12 setembro 2009

Por que os gatos?

I. Eu sou cinqüenta por cento você. Posso ver na sua foto as minhas olheiras e a minha boca. Se eu lhe conhecesse, talvez soubesse o quanto mais. Você é a lágrima que eu segurei e a lembrancinha comemorativa tão importante que eu não tive pra quem entregar. Você é o meu final de semana inútil e entediante repetido anualmente e os anúncios da TV pelos quais eu alimentei um ódio reprimido. Só agora eu vejo. Você é o meu não ter pra onde fugir - você não me causa nada, mas agrava o meu desespero, quando ele me vem. Ainda assim, metade do que há em mim veio de você. Mas qual metade? Você é o músculo que me falta, a força que eu não tenho. Você é a rejeição em mim – eu me privo de sentir a sua ausência tanto quanto você pôde me privar da sua presença. Você é o meu refinado gosto por tudo o que é ruim, você é o meu pecado, simplesmente por não caber a você nenhum dos pronomes possessivos na primeira pessoa que eu insisto em colocar mesmo assim. E apesar de tudo isso, a metade há ainda. Eu lhe perdôo por ser fraco, por ser homem, por ser desonesto, medroso e um tanto quanto desleal. Eu lhe perdôo pela sua imperfeição e por toda a imperfeição que você me causou – genética e emocionalmente. Eu lhe perdôo pela falta de vontade, pela falta de estudo, pela falta de caráter, pela falta de determinação. Eu lhe perdôo porque eu sou fruto da sua falta de verdade, da sua irresponsabilidade e da sua impureza. E porque eu sinto que no fundo de tudo de ruim que existe em mim, há uma bondade pura e inocente. Essa deve ser a mesma maldade que existe em você porque tenho certeza que veio dos seus cinqüenta por cento. Sentir que há algo que nos une é ao mesmo tempo ridículo e esplêndido. Eu não sei quais foram as suas experiências na vida e você não sabe qual foi a primeira palavra que eu falei, mas você sabe da minha existência e eu sinto a sua. Em que você acredita? Qual a sua palavra preferida? Você gosta de música? Qual a expressão que faz seu rosto quando você fica bravo? Você fica bravo com freqüência? Você grita? Você dá bons conselhos? Você mudou? Você ainda fuma maconha? Você prefere praia ou piscina? Quem é você? Eu sei que eu não lhe amo e nem você a mim, mas eu tenho a esperança que ambos possamos nos orgulhar um do outro em breve. Orgulho do futuro, pois do passado só me resta uma vaga lembrança do que você não foi e do que eu nunca deixei a sua ausência ser.

II. Você conquistou o seu lugar em mim. O seu tamanho esconde seu coração mole e a sua força esconde as suas fraquezas. Você se tornou algo pra mim que eu espero que um dia eu saiba lhe dizer o quanto. Você não briga, não grita, não bate e eu tenho vontade de lhe obedecer. Quando você discursa, as palavras não costumam se adaptar a você, elas se confundem e as suas metáforas são péssimas, mas a nossa conversa foi a coisa mais importante que me aconteceu nos últimos tempos – foi a esperança. Você acredita em mim, eu sei e não quero lhe decepcionar. Você é incrível. Você me mima muito e ver a sua bronca disfarçada de conversa séria foi um choque. Ouvir você falando da sua vida, dos seus sonhos não realizados, das suas esperanças e das suas suadas conquistas foi um aperto no meu coração. Eu quero lhe dar essa alegria e todas as outras que eu puder. Eu quero que você possa continuar dizendo sobre mim pros seus parentes com o tom orgulhoso que você sempre usou. Desculpe se eu não pude conter o choro, se eu fraquejo nas minhas decisões e se eu não liguei pra lhe dizer parabéns no último dia dos pais. Pra mim, você é um grande homem. Desculpe-me por nunca ter lhe dito isso.

III. Eu estou feliz de estar de volta, de ter lhe dado a minha confiança outra vez. Eu estou orgulhosa de você, das suas mudanças, das suas escolhas, das suas novas amizades. O tempo que eu passei longe foi o bastante pra você aprender tanto e eu sei que eu perdi essa parte da sua vida, mas eu estou imensamente feliz por ter conseguido encontrar o caminho novamente antes que fosse tarde demais. Obrigada por ter mantido as portas abertas, por ter me aceitado de novo. Obrigada por esconder meus pecados, por rir das minhas merdas e por não ficar brava quando eu durmo muito cedo no meio das nossas conversas de madrugada. Obrigada pelas mensagens cheias de gírias que você me manda e obrigada por me admirar, mesmo sabendo que eu não sou tão perfeita assim quanto os outros acreditam. A sua admiração é de um valor inestimável pra mim, meu bem, porque você sabe a verdade. Eu amo você e eu espero que você entenda que, mesmo longe, eu sempre lhe amei. Passe o tempo que for, quando você precisar, eu estarei aqui sempre - nós somos Soares, somos mulheres e somos (muito) iguais.

IV. Eu não me importo com quantas vezes você repete as histórias. Eu darei risada todas as vezes das mesmas piadas, mesmo que elas não tenham graça desde a primeira. E quando nós segurarmos as mãos pra atravessar a rua, eu não permitirei que você veja que o tempo passou tanto e deixarei você pensar que ainda é você que me conduz, mesmo que hoje seja o contrário. Eu amo você na sua braveza, nas suas graças, nos seus tabus e na sua implicância. Obrigada por ser o alicerce que deixou essa família em pé por tantos anos. Quando você nos deixar, o mundo não será mais o mesmo, mas nós continuaremos caminhando porque você nos traçou esse destino com a sua determinação. Obrigada, mais uma vez, por todos nós, que somos, antes de tudo, fruto do que você sonhou.

V. Eu nem notei e você cresceu. Os pêlos engrossam e as espinhas marcam o mesmo rosto de menino que eu cresci olhando. O brilho nos seus olhos é o de sempre, mas hoje esconde tudo de você que eu não conheço mais. A gente se confessa às vezes, às vezes falando, às vezes não, e é uma confissão complexa, você sabe. Eu não sei me encontrar mais em você com a facilidade de antes. Você era o único homem da minha vida, o mais próximo, o mais (quase) homem. E agora eu me perdi de você um pouco. O que isso significa, eu já não sei explicar. A gente tomava banho junto naquele banheiro e jogava futebol no box com as bolinhas que a gente comprava no Extra, lembra? Era a nossa alegria. Você ficava do meu lado em todas as brigas idiotas e a recíproca era verdadeira. Você ouvia os meus conselhos infantis pras suas brigas infantis, o que até que era apropriado. Hoje, quando eu entro na sala, você tá jogado no sofá, com as olheiras de quem dormiu a tarde toda, você esconde a sua cueca preta de mim. Existe um conteúdo nela, uma vergonha, uma discrição, você esconde a parte nova que cresceu em você e eu finjo não ver, também. Nós seguimos nos garantindo que nada mudou, apesar disso. Os nossos hormônios contradizem a nossa certeza, mas nós os silenciamos, com a mais dura repressão de nossos antigos sentimentos que mantemos intactos. O meu amor por você é o mesmo, menino, mas tente entender um pouco sobre a minha deficiência em amar o homem que você está se tornando – eu não tenho prática alguma no assunto. Talvez, quem sabe, você me ensine. Talvez eu precise de você pra me ensinar isso, sabia?

VI. Eu desejo a sua felicidade. Eu desejo a sua felicidade tanto que chega a ser até um egoísmo, como se a sua felicidade fosse me pertencer, me libertar, me fazer encontrar o caminho. Eu não quero ser a sua felicidade, nem sequer a sua tristeza. Tento me manter numa distância apropriada pra não ser o bastante pra representar nenhuma dessas duas coisas: não posso estar muito perto, tampouco posso estar tão longe. Eu não sou o bastante pra ser tanto pra alguém. Eu estou pedindo ajuda de qualquer lado que me ofereça, eu preciso de ajuda. Não só pra minha vida, mas pra lidar com você. Com a minha vida, por mais que esteja se afundando numa merda sem fim, como você não cansa de me dizer, eu não me preocupo. Eu tou me enterrando nas minhas dúvidas, nos meus sentimentos confusos e, no fundo, no fundo, eu não to nem ai pra isso. Os meus métodos são uma bagunça, mas os meus planos estão se realizando lentamente, e ninguém pode dizer que não está funcionando, no fim. As coisas vão se resolver em breve, eu sei. O que me aflige é que eu não sou crescida o bastante pra tomar conta de você assim, emocionalmente. Eu não sou mulher o bastante pra encarar a realidade. O meu mundo de fantasia caiu e eu estou perdida, mas eu vou me encontrar por aí, pode ter certeza. A vida não é fácil, mas a gente tem que encontrar umas alegrias perdidas em lugares rotineiros. Deixa eu fazer minhas escolhas, deixa... Agora é a parte que você solta da minha mão porque eu preciso voar sozinha. A seu ver, a minha gratidão tem a obrigação de ser uma corrente que me amarra a você. Ela não é. E se fosse, eu não a chamaria de gratidão. Você continua insistindo que ela não existe em mim, mas existe, sim, só que pra mim, ela assume outro formato. Gratidão é inanimado. Gratidão não se expressa em cada conversa banal de nossas vidas. Rotineiramente, não existe o costume de expressar amores imensos. Não existe a hora do abraço e nem a felicidade constante. A gratidão se esconde, talvez, mas ela existe, acredite. Se ela não existisse, eu não estaria aqui, esperando por um final feliz, mesmo sabendo que a história é verídica. Em histórias verídicas não existe o felizes para sempre. Eu ainda quero ir embora, mas eu não vou lhe deixar. Aqui está a minha gratidão. Ela é tímida, pouco explícita, e, talvez, muito pequena para as suas expectativas. Eu lhe devo muito pelo que eu sou, mas eu não tenho a obrigação de ser pelo que eu lhe devo. Não descarregue nas minhas costas o peso de ser o que você não foi. A sua vida não acabou, é só o brilho da sua esperança que está um pouco apagado. Você é muito boa em tudo o que faz. Você sempre se torna boa em qualquer coisa que faça porque o que você gosta mesmo de fazer é de ser boa. Eu sou uma obra sua, mas o seu perfeccionismo não pode se aplicar a mim. Eu gosto de ser humana, de ter defeitos, de fazer merda e de não saber o que fazer, quase sempre. Coloque a mão na massa, dê a cara à tapa – você é boa, você consegue. Recupere a sua esperança. Eu gostaria de poder ir buscar toda a felicidade e esperança que lhe falta pra lhe dar de presente, mas eu não sei como fazer isso e não quero, também. É uma tarefa que tem que ser sua! Desculpe-me pelo que falta em mim e pelo meu excesso de imperfeição. Desculpe-me por preferir artes a matemática e por não seguir a risca o plano que você traçou pra mim. Há agora uma barreira pros sentimentos de mim para você (me desculpe por essa fraqueza, também) e ela se fortaleceu com o tempo que nós não reparamos passando, mas ainda existe o amor, lá no fundo. Como um cenário, que a gente só repara se falta. O nosso amor não é a peça, nem é ator principal, mas sempre está lá. Nós duas sabemos disso. É o amor mais complicado do mundo e o mais simples. Ele sempre existe, não importa. Deixemos as coisas como são, mais cedo ou mais tarde a gente se ajeita. A minha tristeza vai se desvencilhar de você e a sua felicidade, de mim. Seremos completas, então.

VII. Eu tenho me privado de dizer. O combinado é muito claro. Não estou cobrando isso de você, mas de mim. Eu sou assim: eu falo de sentimentos. Eu tento explicar, eu sou explícita, eu não sei esconder, eu escrevo, eu falo e eu não vou me cobrar discrição agora. Eu bem que tentei, mas cansei já. Eu não vou me mudar por ninguém. Por mais amor que haja é sempre preciso lembrar me ver antes. Muito bem. É complicado, mas sigo tentando me permitir. Não é fácil pra ninguém. Eu não sou nem um pouco como nos seus sonhos mais lindos, mas eu tenho a vantagem de ser muito real e de gostar do que você é de verdade. Eu fujo do padrão das suas constantes desilusões em vários sentidos e é, realmente, um bom motivo pra você fugir. O meu maior defeito é gostar de você. Tudo o que é desconhecido causa medo, mas não espere até eu ir embora (de novo) pra sentir falta dele e decidir aceitá-lo.