O piano estava fechado, havia sido muito requisitado hoje, mas agora descansava. Clarice, com os dedos ainda doendo de tocar, estava sentada no banquinho almofadado encostada na madeira preta e polida que agora cobria as teclas. Estava contente (oras, muito mais que contente!) observando com os seus olhos cor de mel um moço de chapéu e calça xadrez batendo os dedos nas cordas de um violão, apertando um acorde de Sol com a outra mão e cantando. Ah, que lindo ele era! O cabelo loiro quase branco escapando delicadamente por baixo do chápeu, com todo o estilo que lhe era peculiar e os olhos negros como as teclas de meio tom acima de dó, ré, fá, sol e lá muito concentrados na partitura. Ela o olhava com uma paixão que há algum tempo se julgava incapaz de sentir. Eles estavam sozinhos e a casa era grande. Mil pensamentos a iludiam. Quando Gabriel notou a vaga atenção tão severamente destinada à sua composição, corou. Ele era um garoto muito extrovertido, mas perto dela tudo o que sabia não valia de nada, era um Universo novo. Pousou a mão nas cordas irritantes que insistiam em continuar vibrando. Pegou a lapiseira e fez uma anotação na letra da música. Apoiou o violão na parede e ficou de pé. Na frente dela. Ambos os corações dispararam, incontroláveis. Aquele segundo em que o casal se fitou durou uma década.
- Nós vamos ganhar esse concurso – ele disse – e qualquer um. A nossa música é perfeita, o seu arranjo do piano ficou magnífico e a sua voz... Sua voz é... Inexplicável.
- Pessoas apaixonadas compõe muito bem, ainda mais – ela estremeceu – juntas.
Ele riu e se aproximou um pouco dela. Era tudo o que precisava ouvir, era tudo o que queria.
- Você me faz parecer uma criança, Clarice. Olha isso! – mostrou a mão, trêmula.
- Oras, meu bem, um dia a gente cresce... – Ela segurou a mão dele e levantou, ficando muito, muito perto dele. Ele fechou os olhos e respirou fundo por um segundo, o perfume dela preencheu a sua alma. Ele nunca esteve tão completo. Amava Clarice.
- Meu amor, – disse enquanto a envolvia nos braços - se ser criança é isso, eu quero ir pra Terra do Nunca com você!
Ela riu e retribuiu o abraço, ainda o olhando no fundo dos olhos.
- E eu te amo, Peter.